Filha de cozinheira, concluinte do ensino básico pelo EJA, portadora de deficiência e sobrevivente de uma depressão, Rithiele Souza Silva, 30 anos, alcança o sonho de ser médica. Formatura será em agosto
Determinação para perseguir o sonho até o fim é para poucos. Quando se trata de medicina, profissão de maior prestígio no país, segundo dados do Observatório Febraban, diversos fatores podem interferir na jornada de um estudante, como alta concorrência, disposição de recursos financeiros, complexidade do curso e questões pessoais. Para Rithiele Souza Silva, 30 anos, nenhum deles foi suficiente para afastá-la do desejo de se formar no ensino superior, sendo a primeira da família a concluir uma faculdade, e de levar o diploma de médica pela Universidade de Brasília (UnB) para casa.
Na adolescência, a jovem abandonou os estudos mais de uma vez por problemas familiares, dificuldades financeiras e situações envolvendo a saúde mental. Moradora de Sobradinho, a vida dela foi marcada pelo convívio frequente com médicos e tratamentos, em razão de sua deficiência: paralisia hemiplégica cerebral. Por isso, admirando o trabalho daqueles profissionais, a medicina surgiu para ela como grande ambição.
“Cuidar de pessoas é o que gostaria de fazer. Não tinha idealização, até porque isso era distante da minha realidade. Mas havia uma vontade de ficar bem na vida, e passei a me ver naquele lugar. A medicina me escolheu”, descreve.
Este ano, após interromper os estudos para ajudar no sustento junto à mãe, que é cozinheira e vende marmitas, passar cerca de 10 anos fora da escola, no total, pelos cálculos dela, superar um quadro de depressão e concluir o ensino médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), Rithiele vai se formar médica pela UnB, em agosto. “Quando entreguei o convite da formatura, acionei uma contagem regressiva; caiu a ficha”, conta, emocionada.
Dificuldades

Quando cursava o oitavo ano do ensino fundamental, aos 13 anos, a futura médica diz que deixou os estudos pela primeira vez, em razão de uma depressão. Na mesma época, a mãe dela engravidou da filha mais nova, sem ter rede de apoio, e a família enfrentava dificuldades financeiras. A estudante optou por ficar em casa ajudando a mãe.
Aos 17 anos, não conseguiu completar o ensino médio pelo EJA, pois era menor de idade, então a Secretaria de Educação determinou que ela voltasse ao ensino regular, o que não ocorreu. “Eu não tinha a mesma condição dos meus colegas, vinha sem bagagem nenhuma de conteúdo. Então, preferi começar a trabalhar, porque achei que não valia a pena voltar a estudar”, relata.
Durante o período fora da escola, Rithiele teve vários empregos: vendedora de roupas e de maquiagem, atendente no Ministério das Comunicações e em lojas de departamento. Ela diz que sua mãe nunca apoiou o abandono dos estudos, mas que, com o tempo, percebeu que era “a melhor escolha naquele momento”, pela impossibilidade de pagar alguém para ficar com a irmã mais nova: “A situação estava difícil para nós duas”. Porém, ela não desistiu. Aos 22 anos, a estudante concluiu a educação básica pelo EJA e decidiu que faria ensino superior.
Motivação
Para a jovem médica, sua maior motivação sempre foi a família. Em casa, a visão sobre o estudo era objetiva, sem muitas projeções sobre faculdade ou especializações: “Você estuda até onde conseguir e, depois, arruma um emprego; vai levando a vida”. Ao contrário da perspectiva familiar, a formanda insistiu na educação por enxergá-la como meio de trazer melhores condições de vida à mãe, que estava desempregada e havia acabado de perder o restaurante com a pandemia de covid-19, em 2020.
“Na época, eu estava casada e me sentia pressionada por vê-la precisando de mim e não estar perto, não poder ajudá-la. Às vezes, lhe faltava o básico, como fazer uma compra”, compartilha. Assim, a estudante começou a se preparar para o vestibular de medicina com apoio do ex-marido e, durante dois anos, já morando no Plano Piloto com ele, pôde se ocupar dos estudos em tempo integral.
Dedicação

Para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Rithiele estudou sozinha por mais de 10 horas diárias, por meio de plataformas on-line e do programa da Secretaria de Educação Bora Vencer, que oferece aulas gratuitas preparatórias para o Enem. “Eu fazia tudo o que era necessário para ser aprovada. Tive essa disciplina forçada e estabeleci uma rotina”, expõe.
Em 2018, passou para odontologia na UnB, mas não assumiu a vaga por não ser seu foco principal. Um ano depois, 2019, veio a notícia da aprovação em medicina, por meio de cotas para Pessoas com Deficiência (PcDs), no Sistema de Seleção Unificado (Sisu), plataforma que usa a nota do Enem e adotado pela UnB até aquele ano. “A primeira vez que fiz a prova, nem sabia como o vestibular funcionava. No dia em que passei, nem acreditei. Minha mãe ficou muito emocionada, e minha família se orgulha de mim”, relembra, sorridente.
Boas histórias

Durante os seis anos no curso de medicina, marcado pela experiência prática no Hospital Universitário de Brasília (HUB) nos dois anos finais da formação, Rithiele traz histórias marcantes da convivência com colegas e professoras que levará para a vida toda. Uma das profissionais em que se inspira é a coordenadora do curso, Dra. Selma.
“Ela me deu muitas oportunidades, foi como uma mãe para mim, me ajudou psicologicamente e até financeiramente. Antes mesmo de todo mundo saber a minha história, ela me acolheu e deu todo o suporte. Sempre me incentivou, foi muito humana comigo”, admite, com carinho. Além de Selma, a estudante tem outras referências: “Drs. Carina, João, Lobato e Ricardo foram mais do que médicos e professores na minha caminhada, e tenho muito a agradecê-los”.
A formanda da UnB também vai se recordar da faculdade pelas amizades, que considera “como irmãos”, e pelo que aprendeu no curso, percebendo seu crescimento profissional e pessoal. “Acredito que me tornei outro ser humano depois da faculdade, em questão social, mental e política. Ela me trouxe uma visão de vida”, comenta.
Desafios
Para a jovem, o maior desafio do curso foi acompanhar o ritmo acelerado dos colegas, que mostravam uma “inteligência fora de série”. Contudo, ela nunca se deixou abalar por isso, prezando pelo próprio bem-estar. “Eu fui descobrindo informações que o pessoal já sabia há muito tempo, porque meu foco nunca foi só a faculdade. Absorvi o que pude sempre respeitando meu tempo”, explica.
Para facilitar a logística, Rithiele se mudou para a Asa Norte na graduação, em um apartamento alugado, para ficar mais próxima à UnB. Porém, este ano, ela decidiu voltar a morar em Sobradinho. Além dos estudos, a estudante trabalha como terapeuta holística, o que garantiu o pagamento do aluguel quando se alocava no Plano Piloto.
Ainda hoje, ela diz que questões familiares, como falta de dinheiro, têm um peso grande em sua vida. “Às vezes, pensamos em desistir. Isso te tira do eixo, não tem como competir com a medicina”, lamenta. Por isso, seu maior desejo é, por meio da profissão, reverter essa realidade: “Só quero dar uma vida tranquila para minha família”.
Preconceito
Além dos desafios profissionais e pessoais, Rithiele se lembra de duas situações em que sofreu capacitismo, preconceito relacionado à deficiência. Uma vez, ela cita que recebeu nota inferior aos colegas porque “não tinha força suficiente” em um exame físico que não exigia isso: “Todos tiraram 10, e eu, oito; ouvi que não merecia nota maior e ainda fui questionada se conseguiria levar minha carreira à frente por causa da minha deficiência”.
Outra vez, em uma simulação de intubação, o professor se recusou a ensiná-la por ele achar que “não tinha preparo para dar suporte” a ela. “Busque um vídeo no YouTube para aprender, porque não consigo ensinar pessoas como você”, a estudante ouviu.
Mensagem
Após lidar com todos os desafios da trajetória, a futura médica gostaria que cada vez mais pessoas pudessem superar as próprias limitações e alcançar posições de destaque. “Não quero ser a exceção, nem ter o palco só para mim. Histórias como a minha devem se repetir”, defende.
Com a formatura se aproximando, ela quer ter estabilidade antes de optar por seguir uma área específica, mas tem grande interesse por medicina de família, do trabalho e psiquiatria. Como mensagem final, ela propõe que se busque a felicidade, mesmo diante de incertezas. “Se você está insatisfeito com o que faz, vá atrás do que te traz alegria, porque isso te motiva. A medicina é isso para mim”, orgulha-se.
*Fonte: Júlia Giusti/Estagiária sob a supervisão de Ana Sá – Eu Estudante/ correiobraziliense.com.br