Especialistas avaliam como esses medicamentos revolucionários vão impactar nos cuidados com a saúde no futuro e advertem: eles não são o ‘Santo Graal’ do emagrecimento.
O futuro das canetas indicadas para tratamento de obesidade ainda está por escrever. Mas os especialistas fazem seus esboços. De imediato, reconhecem que esses medicamentos que simulam a ação do hormônio GLP-1 foram revolucionários num deserto de opções. “A gente carecia de produtos que tivessem alguma efetividade maior no tratamento da obesidade, e a sociedade vinha clamando por isso”, diz o endocrinologista Josemar de Almeida Moura, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Nunca antes a gente teve uma intervenção farmacológica com essa potência de efeito, então é um auxiliar na terapia para o tratamento da obesidade de muitíssima relevância”, afirma o nutricionista e fisiologista Hamilton Roschel, diretor científico do Centro de Medicina de Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Mas o furor estaciona aí. “Hoje acontece uma panaceia, como se o problema já tivesse sido resolvido”, alerta Moura. “Como manejo isolado da obesidade, esses miméticos de GLP-1 não podem ser entendidos como o Santo Graal”, ressalva Roschel. No dia 1.º de dezembro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma diretriz global para o uso desses medicamentos.
Essa discussão tão contemporânea faz parte do especial Viver em transformação, sobre saúde e bem-estar, último capítulo da série temática que o Estadão publicou ao longo de 2025 para comemorar seus 150 anos. Veja também: o “hub” de conteúdo, onde estão reunidas todas as notícias relacionadas ao aniversário do jornal, e os especiais República em transformação — em que discutimos saídas para a polarização política no País —, Economia em transformação, que aborda caminhos para o Brasil deixar de ser uma nação de renda média, Tecnologia em transformação, que discute o futuro da inteligência artificial, Terra em transformação, especial que propõe soluções para evitar o colapso climático, e SP em transformação, sobre o futuro da capital paulista.
Novidades devem chegar em breve
As canetas são medicamentos injetáveis inicialmente desenvolvidos para tratar a diabete tipo 2, mas que derivaram para o tratamento da obesidade e para o controle de peso porque imitam a ação de um hormônio natural produzido no intestino, o GLP-1, por vezes conjugada com a imitação de outro hormônio, o GIP. O GLP-1 retarda o esvaziamento do estômago, promovendo por tabela a sensação de saciedade e a redução da ingestão de calorias. O GIP ajuda no metabolismo da gordura e da glicose.
O conteúdo das canetas varia de país para país, de acordo com a liberação das respectivas agências reguladoras. As substâncias autorizadas pela Anvisa no mercado brasileiro, por enquanto, são a semaglutida (presente no Ozempic e Wegovy), a liraglutida (Saxenda e Victoza) e a tirzepatida (Mounjaro). A retatrutida está em fase 3 nos ensaios clínicos, para avaliar a eficácia e a segurança. Ou seja, ainda não tem registro e, portanto, não está liberada para a comercialização. As permitidas devem ser aplicadas sob a pele semanalmente (semaglutida e tirzepatida) ou diariamente (liraglutida), em doses indicadas pelo médico.
Mas esse cardápio de substâncias deve aumentar vertiginosamente nos próximos anos. “Há mais de 130 estudos em fase 3 desses análogos para serem liberados“, diz o cirurgião do aparelho digestivo Elesiario Caetano, professor na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mais de 60 empresas estariam investindo nessa esteira, e projeções apontam que o mercado dos agonistas de GLP-1 saltará dos US$ 48,3 bilhões, em 2024, para US$ 121,1 bilhões em 2034.
Para abocanhar ainda mais esse mercado, as farmacêuticas vêm investindo na versão em comprimido desses miméticos – e a oferta deve ser ampliada. Um desafio para aqueles que são fragmentos de proteína, como a semaglutida e a tirzepatida, é vencer o trato digestório. Para não serem degradados antes do tempo, precisam ser protegidos por uma técnica chamada SNAC, que melhora a permeabilidade da mucosa gástrica.
Em função desse detalhe, há certa euforia para uma substância totalmente nova, o orforglipron, aprovado nos ensaios clínicos e que deve ser submetido para aprovação no final deste ano. Sintético, ela teria mais condições de driblar os percalços até a corrente sanguínea.
Além de serem fáceis de transportar e tomar, os comprimidos cairiam bem para quem tem certa ojeriza por injeções. Eles também prejudicariam menos o meio ambiente, já que as canetas demandam o uso de plástico. Caetano destaca apenas que a medicação oral tem de ser mantida diariamente, enquanto a maioria das injeções subcutâneas é semanal – e já se estuda uma variante mensal.
Sem milagres
Se os agonistas de GLP-1 parecem um caminho sem volta, os especialistas lembram que nem por isso a obesidade estaria com os dias contados. Talvez muito pelo contrário. Segundo o Atlas Mundial da Obesidade de 2025, mantendo-se as tendências atuais, o índice de massa corporal (IMC) elevado afetará quase 3 bilhões de adultos – cerca de 50% da população adulta mundial – até 2030. Por IMC elevado se entende um IMC maior que 25, que indica sobrepeso. Maior que 30 seria obesidade no grau I, que pode subir de patamar até o grau III. No Brasil, os dados mais atuais do Ministério da Saúde e do Atlas apontam que a obesidade afeta entre 20% e 30% da população brasileira.
Quando os especialistas afirmam que as canetas não são o Santo Graal, dão a entender que não são milagrosas diante de uma doença crônica como a obesidade. Aliás, a depender do uso, podem até comprometer o quadro. Em primeiro lugar, porque elas precisam ser acompanhadas por alterações no estilo de vida, como uma dieta mais equilibrada e a prática de exercícios. Seriam coadjuvantes, não protagonistas. “Por si só, não induzem a qualquer tipo de mudança de comportamento, que é a chave na manutenção do peso perdido”, diz Roschel.
Se a pessoa interromper o tratamento e parar de aplicar a injeção, por exemplo, o apetite é retomado. Não só retomado, mas muitas vezes intensificado. “Há pessoas que querem perder dois ou três quilos e acabam ganhando dez depois que param com o medicamento”, afirma Moura. Passam a ter problema de ganho de peso quando não o tinham porque usaram uma droga cujo fim não é o de enxugar a barriga saliente. E, lembram os especialistas, ainda perdem massa magra em função da velocidade do emagrecimento, que é mais difícil de recuperar.
Ao mesmo tempo, interromper a aplicação desses agonistas é algo previsível, porque o uso ad aeternum não parece razoável como terapia. “A gente não sabe se os seus efeitos se mantêm com o uso prolongado, tampouco quais são os efeitos negativos desse uso prolongado”, adverte Roschel. Diante da falta de apetite provocada pela droga, por exemplo, é fundamental fazer um manejo nutricional da pessoa, pois fica uma pergunta no ar: o que comer quando não se tem vontade de comer nada?
“Sem esse acompanhamento, pode haver uma piora de comportamentos alimentares, o que talvez vire um gatilho para o desenvolvimento de um transtorno alimentar, como bulimia e anorexia”, afirma Roschel.
O efeito ioiô também está no horizonte dos especialistas, que já criticavam dietas restritivas e agora estão diante de idas e vindas de quem toma a medicação por três meses, interrompe por conta própria, volta, interrompe novamente, tudo sem acompanhamento. “Que impacto isso pode ter sobre a saúde, o comportamento e a cabeça da pessoa?”, indaga o nutricionista.
O uso prolongado, intermitente ou não, pode trazer outros efeitos colaterais importantes, como piora do refluxo e da constipação intestinal, e consequências graves, como pancreatite aguda. Na bula de alguns desses produtos, também são mencionados possíveis problemas de visão, como a neuropatia óptica isquêmica anterior não arterítica. Estudo da Escola de Medicina da Universidade Harvard, nos EUA, apontou essa questão oftalmológica relacionada ao produto, entendendo que a descoberta é significativa, porém ainda não conclusiva.
Fato é que, diante de uma droga que causa gastroparesia, ou seja, uma lentificação nos músculos do estômago – daí o atraso no esvaziamento da comida –, é necessário que seja interrompida semanas antes de certos procedimentos que requerem anestesia (endoscopia e colonoscopia, inclusive), a fim de evitar complicações como aspiração de conteúdo gástrico e alterações na pressão e frequência cardíaca.
Massificação do produto
O prolongamento da terapia por muito tempo também não parece viável porque seu custo é impeditivo para a maioria dos bolsos, pelo menos por enquanto. “Nos meus 36 anos de formado, já vi medicamentos que eram muito caros de início, como os anti-hipertensivos e as estatinas, e isso mudou com a entrada de mais players, com a quebra de patentes, com mais opções de drogas”, diz Moura.
A partir de um maior acesso da população aos agonistas, continua o endocrinologista, o sistema público poderia economizar com o controle de comorbidades ligadas à obesidade, como diabete e hipertensão, e com a diminuição de aposentadorias, pensões e falecimentos precoces relacionados à doença.
Mas a hipotética massificação do acesso levanta mais questões. Para Roschel, ela não sobreviverá com qualidade sem um programa de intervenção multiprofissional, condição sine qua non para o sucesso do tratamento diante, inclusive, de pequenos reganhos de peso ao longo do processo. Ele também requisita maior facilidade de acesso a alimentos saudáveis e condições sociais para que as refeições sejam mais descascadas que desembrulhadas, porque não há tratamento contra obesidade que sustente o peso de um cotidiano engordativo.
“Temos o Guia Alimentar para a População Brasileira, que prega com muita propriedade que se diminua o consumo de alimentos ultraprocessados, que se invista em comensalidade e tal, mas como uma mãe de três filhos, que pega duas horas de ônibus para ir e voltar, tem condição de preparar algo além do macarrão instantâneo para a molecada?”, pergunta.
A fissura por ultraprocessados, aliás, não dá sinal de recuo. Uma coletânea publicada na revista The Lancet em novembro mostra aumento global no consumo desses produtos industriais ricos em açúcar, sal, gorduras e aditivos, como aromatizantes e emulsificantes. No Brasil, segundo o estudo, ele avançou de 10% para 23% em quatro décadas. Para além das ações individuais, os 43 pesquisadores, liderados por cientistas do Brasil, da Austrália e do Chile, defendem a urgência de políticas públicas para reduzir a produção, a publicidade e o consumo desses alimentos.
Moura, por sua vez, pede critério para os análogos de GLP-1: “Acredito que as canetas vão se disseminar, mas espero que dentro de uma prática saudável, ética e necessária”. Para determinados casos, aliás, os especialistas lembram que a cirurgia bariátrica, que já tem chão, pode ser uma melhor alternativa, sem esquecer que também traz riscos e efeitos colaterais e que é indicada para quem tem IMC a partir de 40 ou IMC a partir de 35 associado a comorbidades.
Como destaca a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), embora os primeiros números dos agonistas sejam promissores, com perda de aproximadamente 15% a 20% do peso corporal inicial, a cirurgia bariátrica, especialmente procedimentos como o bypass gástrico, demonstrou redução de peso mais substancial, variando entre 25% e 35%, e com a manutenção dessa perda por mais de uma década. A SBCBM também menciona estudos apontando que até 80% dos pacientes submetidos ao bypass gástrico experimentam remissão da diabete tipo 2, enquanto a hipertensão arterial pode melhorar ou desaparecer em mais de 60% a 70% dos casos.
O endocrinologista volta novamente ao passado para tentar vislumbrar o futuro. “Num certo sentido, comparo as canetas para obesidade ao tratamento da H. pylori”, diz Moura. A Helicobacter pylori é uma bactéria que infecta o estômago e o duodeno, podendo causar inflamação, úlceras e até câncer de estômago. “Há uns 25 anos, havia cirurgiões gerais que só operavam úlcera”, recorda ele. “Não digo que não se faça ainda hoje, mas o tratamento da H. pylori com antibióticos praticamente acabou com a cirurgia da úlcera”, diz.
Drogas e procedimentos relacionados à perda de peso se acumulam, se superam, se alternam, se complementam. O que, infelizmente, não parece ter fim é a pressão estética, que ganhou ainda mais sustância nas redes sociais e que prega uma silhueta esguia a qualquer sacrifício. “É preciso fiscalização, porque a gente vê as pessoas comprando drogas na internet que ainda não são manipuláveis e numa compulsão atrás da novidade para perder, além de tudo, poucos quilos”, alerta Moura. “Isso, sim, é um risco enorme para a saúde.”
Fonte: Delmo Menezes / Agenda Capital -com Estadão






